terça-feira, 19 de outubro de 2010

Já não há heróis


Este Orçamento devia vir acompanhado de um pedido de desculpas.

Este Orçamento devia vir acompanhado de um pedido de desculpas. Mas traz apenas uma anotação colada, que diz: "É mau mas tem que ser." É mau? É. Tem de ser? Tem. Mas o Governo tem a obrigação de responder porquê e para quê. E o País paga para ouvir melhor resposta que "É isto ou o FMI". Não foi este o mandato que nos pediram há um ano nas eleições.


Portugal em queda livre. Só o pânico viabilizou tamanha audácia. A proposta de Orçamento é dura, violenta, até descontroladamente exaustiva porque a economia entrou na fase derradeira da sua suficiência: a nossa crise financeira está ao nível da gestão da liquidez da economia.

Leia outra vez a frase: a crise está ao nível da liquidez. O ministro das Finanças assumiu-o, aliás pela primeira vez, o que permite compreender melhor as "manifs" ordeiras dos banqueiros na semana passada.

Hoje, o problema português não é o custo da dívida, é o acesso a essa dívida. Sem este Orçamento ou coisa que o valha, há descida de "rating" e das perspectivas das agências, o que nos empurra para a possibilidade de cair dos "A" para os "BBB". Aí, o financiamento à economia fecha. Podemos ter saldos no balanço mas ficamos sem dinheiro na caixa.

Mas precisamos desse dinheiro. A economia portuguesa deve, na sua totalidade, quase 200 mil milhões de euros e todos os anos precisa de refinanciar parte disso: pedir empréstimos para pagar empréstimos. Ora, o próximo ano é especialmente difícil, só o Estado tem de refinanciar 40 mil milhões de euros, dos quais quase 18 mil milhões até Abril.

Daí a urgência. Não estamos à beira do precipício, já estamos em queda livre e temos apenas uma corda fina atada à cintura e não sabemos se basta para nos salvar - é o Orçamento. Se romper, caímos na rede do FMI. E ficamos emaranhados nela.

Um OE para pagar dívidas. Ninguém pode dizer que é pouco. O Orçamento de Teixeira dos Santos é de uma violência inédita, quer nos aumentos brutais de impostos, quer nos cortes de despesa drásticos que prevê.

Os impostos aumentam por todos os lados, feitios e maneiras. São acompanhados por uma multiplicação de taxas e de subidas de tarifas (na energia e nos transportes, por exemplo). Não há volta a dar: vamos todos pagar mais. Sobretudo através de dois impostos: IVA e IRS.


Pagaremos a mesma quantidade de impostos que em 2008, diz-nos o ministro das Finanças. É uma ilusão. Porque o valor total é o mesmo mas há uma deslocação. As empresas pagam cada vez menos porque lucram cada vez menos. A receita de IVA dispara 20% em dois anos e já pesa 14 dos 34 mil milhões de euros de receitas de impostos. No IRS, o valor global é próximo do de 2008 mas há menos trabalhadores a pagá-lo: é o mesmo a dividir por menos.

Tudo isto em nome do défice orçamental e de um choque recessivo sem paralelo em democracia. Prever crescimento económico para 2011, como prevê o Governo, é o último delírio de José Sócrates. Aliás, Teixeira dos Santos fez contas às receitas fiscais contando com uma recessão. O ministro das Finanças chama-lhe prudência. Mas é apenas ter vergonha na cara.

Muitas das medidas previstas neste Orçamento do Estado são descoordenadas e nem têm impacto orçamental, mas mesmo assim são bem-vindas. A fusão de organismos é feita a olho e sem estratégia, mas o Estado muda mais num dia de impulso que em cinco anos de estudos do PRACE. A redução do número de administradores nas empresas públicas, outro exemplo, é alinhar no que o Governo chama de demagogia do Bloco de Esquerda. Mas como os Conselhos de Administração têm tipicamente cinco elementos, basta mandar borda-fora o "boy" que lá está por frete ou como "controleiro" para perfazer a quota. A empresa fica melhor. A decência democrática também.

A verdade é que o PEC 2 foi um fracasso, há uma derrapagem de 500 milhões na Estradas de Portugal, prevê-se outro tanto na Saúde, faltaram receitas de barragens e tivemos de pagar o que queríamos submergir nas contas deste ano. Todos os anos há uns submarinos surpresa, esperemos que no próximo ano não seja o BPN...


O Governo falhou o défice orçamental de 2010, que sem o fundo de pensões da PT seria superior a 8%. Que credibilidade têm as mesmas pessoas para dizerem que desta é que é a valer? Pouca. Por isso é que foi preciso ir ainda mais longe. Nas receitas fiscais. E sobretudo na despesa: um corte de 4,5 mil milhões de euros na despesa do Estado merece uma estátua. Pena que seja feito à custa da economia. Porque este Orçamento destrói para salvar. É um arrastão fiscal, uma quimioterapia da economia, uma telepatia dos credores que querem sangue para continuar a emprestar mais.

Fica a dívida. Resolvido o défice nos 3%, ficaremos com a dívida na casa dos 90% do PIB. No próximo ano, vamos pagar mais 20% de juros, para um valor total na casa dos seis mil milhões de euros. São seis meses de IVA só para pagar juros. Ou, de outra forma, um em cada cinco euros de impostos pagos pelos portugueses vai para pagar o custo de capital, sem contar com a amortização da dívida.


Na negociação entre o PS e o PSD, se ela de facto existir e não passar de uma mera simulação para dispensar responsabilidade política e precipitar eleições, este factor tem de ser assegurado. Qualquer ganho orçamental tem de beneficiar uma descida de impostos, não um aumento da despesa. E os dois partidos, juntos ou separados, têm de assumir perante o País o que esse quadro de redução, primeiro do défice e depois da dívida, implica: muitos anos a pagar mais.


Sócrates, Passos Coelho ou o FMI. O ministro das Finanças ficou com algumas almofadas para cumprir o défice orçamental desta proposta de Orçamento. Não só porque precisa de convencer os mercados mas também porque precisa de convencer-se a si mesmo: já aprendeu com o PEC 2 que não tem força nem poder para impor estas medidas.

A execução deste Orçamento depende do empenho do primeiro-ministro. Só ele conseguirá impor as fusões e os cortes brutais previstos. Porque do outro lado estará uma máquina preparada para vencer como sempre venceu: pela inércia, como aconteceu no PRACE; pelas corporações, como com os professores, militares e juízes (que têm estranhas ressalvas nesta proposta).


Para lá chegar, contudo, falta uma etapa: o acordo político que viabilize o Orçamento. Neste momento, as posições estão extremadas, entre um PSD que vai impor condições e um Governo que diz que não as aceita. Sem acordo, há FMI.

Voltemos pois à política. O PS e o PSD vão ter de se entender entre si e, depois, cerrar fileiras dentro dos próprios partidos, que serão óbvias fontes de contestação interna. Se esta coesão não existir, dentro de meses estamos na mesma - ou pior. Mas tudo o que aconteceu entre Sócrates e Passos Coelho baixa expectativas de um acordo de longo prazo.

A higiene política desapareceu de Portugal. O Governo fracassou mas age como salvador. Sócrates lavou as mãos antes e Passos Coelho pode lavá-las depois - mas ambos vão ter de apertá-las. Ou usá-las para dizer adeus.






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